sexta-feira, 31 de julho de 2020

A D. Albertina

Tempos houve em morei ali para os lados da Penha de França. Foi, aliás, "a minha primeira casa", daquelas de papel assinado com o banco. 

Pequenita, tão pequenita que mal conseguia arrumar as minhas coisas lá dentro; mas do quarto, da janela das águas furtadas, se me pusesse bem em bicos de pés, conseguia ver uma nesga de Tejo.Só por isso valia a pena. 

Tinha sempre a música muito alta, enquanto bebia cafés e escrevia frenéticamente a minha tese de licenciatura.

Até que um dia me tocam à campaínha. Não estava à espera de ninguém, por isso estranhei o toque.

Quando abro, deparo-me com uma velhinha dos seus 80 anos, cara de miúda reguila por detrás das rugas e cabelos brancos cortados curtos, que prontamente diz chamar-se Albertina, ser a minha vizinha de baixo, e ter o candeeiro da sala abanar por causa do volume da minha música. 

Convido-a a entrar, entre pedidos de desculpa, e pergunto-lhe se quer tomar alguma coisa, ao que ela prontamente responde: "Tens whiskey?"

A partir daí, ouvi a campaínha tocar muitas vezes. 

Foi assim que fiquei a saber que a excêntrica D. Albertina veio do norte para Lisboa, ainda miúda, trabalhar como cozinheira num restaurante da baixa. Que engravidou num vão de escada escuro de Lisboa, e que esteve 48h em trabalho de parto deitada no chão, numa manta, por não aguentar mais as dores, "estava virado", diz ela.

Hoje é uma avó orgulhosa, apesar de afirmar com mágoa que,"eles mal podem esperar que eu bata a bota, para me ficarem com a casa."

O casamento não foi pêra doce. Entre socos e pontapés, em que ela não se ficava, e muito alcool à mistura, lá educou o filho a punho, rija e imponente. 

O marido foi-se há 10 anos, "que deus o tenha", porque depois de um parto tão difícil, a D. Albertina teve que ir de urgência para o hospital, onde lhe fizeram uma histerectomia; ou, nas palavras dela, "fiquei oca por dentro, mas ele (o marido) nunca percebeu, porque eu apertava muito as pernas". Ah, bendito Salazar e a cultura que deste ao teu povo.  


Mas é a energia em pessoa. Calcorreia o bairro de ponta a ponta para saber das novidades, conhece toda gente e faz um manguito a quem não a grama. De manhã, dá de comer aos piriquitos e à sua rola - com quem tem grandes diálogos, lava a roupa no tanque, a ouvir Amália no seu radiozinho, e a cantá-la bem alto.

Ficámos amigas, foi inevitável. 

Um dia convidou-nos a mim e ao Rodrigo para almoçar em casa dela. Bem lhe dissemos "D. Albertina, não se meta em despesas, não há necessidade, fica para outra oportunidade". Mas ela, casmurra como sempre, insistiu. Então, lá nos preparou um cozido à portuguesa, com a "cabeça do mesmo animal", prometeu.

Quando chegamos, meninos finos de cidade, e sabendo nós das condiçoes da sua parca cozinha, ficámos siderados a olhar para uma travessa com uma enorme cabeça de porco a encimar o cozido. Ela, cheia de orgulho, pôs as melhores loiças, a melhor toalha e talheres para nos receber.  

E nós com o estômago na boca, a olhar fixamente para a cabeça do porco, trocámos um olhar desesperado e, obedientes, sentámo-nos à mesa. O vómito a querer sair, o corpo a querer fugir, mas não. Era a D. Albertina, que da sua parca pensão foi ao talho escolher os melhores animais para nos presentear com uma refeição digna de reis. 

Comemos e calámos. "Está muito bom D.Albertina", o arroz branco, solto e aguado, entrava a custo na boca, e lá escolhi uns pedacitos de frango para o acompanhar, a sentir o porco a toda a hora a olhar para mim. "Então e cabeça meninos? É a melhor parte!", "Não temos muita fome D. Albertina, portámo-nos mal e comemos o pequeno almoço tarde..." 

Depois do repasto serviu com orgulho um whiskey de marca desconhecida, que o Rodrigo bebeu com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, tal era a pomada. 

Mostrou-nos a casa toda, pequenina como a minha, a cozinha só com um lava loiças e alguns armários e, a um cantinho, resguardada, a sanita, que ela ainda era do tempo em que as casas de banho eram um luxo.

Mostrou-nos com orgulho as fotografias do filho, da nora e do neto, e de outras crianças que foi adoptando ao longo do tempo, os "afilhados", como ela lhes chamava. E assim acabou o almoço, cumprimos a nossa missão e ela ficou feliz, como estava sempre, diga-se.

Depois o Rodrigo mudou-se lá para casa e as coisas tornaram-se impraticáveis. Ele era arquitecto, e haviam papeis por todo o lado, tinha que instalar o seu mega computador lá em casa, e não havia espaço. Tivemos que procurar outra casa, um pouco maior, para grande desgosto meu. Mas tínhamos decidido ficar juntos, e é assim o amor. 

Tive que "abandonar" a minha D. Albertina, que me coloria as tardes, a bebermos minis e a falar da vida -  mais ela claro, que tinha eu para lhe contar em comparação? Era uma miúda. 

Desepedimo-nos com promessas de visitas regulares, de lágrimas nos olhos, com um até já. 

Eu e o Rodrigo fomos morar não para muito longe, mas a vida meteu-se no meio, eu acabei o curso, comecei a trabalhar, sempre muito ocupada, o Rodrigo tinha mudado de empresa, sempre cada vez com mais trabalho, e o tempo foi passando.

Nunca mais vimos a D. Albertina, e ainda hoje carrego no meu coração esta mágoa de não a ter visitado mais. Já não estará entre nós certamente, o filho já deve estar contente na sua casa nova com a sua família, e já não se deve ouvir Amália pela manhã no prédio...



 











 

 





 

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