quinta-feira, 30 de julho de 2020

Indie

Internamento.Isolamento.Impotência.

Privacidade zero.

Flutua a imaginação. Emoções debaixo da língua, que se enrola e cala. 

Isolamento. De novo. Vislumbre de amor? Ou será da sensibilidade demasiado apurada, que procura ternura em qualquer olhar?
Penso que não. Morro se não te vejo. Escrevo cartas de amor. Faço planos e sonho acordada. 

Se calhar porque à partida é um amor impossível...será da doença?
Foda-se...gosto dela e pronto.

É impressionante. Parece impossível não te olhar, mesmo de sala para sala com um refeitótio no meio. 

De repente transformas-te, ficas a ajudar um colega da tua mesa, senil, com perda de funções motoras, e ficas com ele toda a ceia, a ajudá-lo com os medicamentos, mas sem perderes aquela tua linguagem juvenil de colégio privado. 

E continuas, agora ris-te juntamente com o idoso e a tua colega de quarto, que entretanto se juntou à mesa.

Entras na minha sala, a dos fumadores, iluminas todo o espaço, aceleras o meu batimento cardiaco e dizes:

- Mas não és só comigo. És bruta com mais pessoas. E mesmo que tenhas a razão a maior parte das vezes, és sempre bruta. És sempre assim?

- Não sei - respondi- és tu que me estás a dizer. 

- Pois, lá está a razão - disseste-me - mas és muito bruta - insistes.

Olhas agora para a tv, onde passa uma série tipo National Geographic. Hipopótamos parece-me. Adormeces no sofá, mas não sem abrir um olho, e fechando o outro, e repondendo "pois, pois", à conversa que os colegas iam tendo animadamente à tua volta.

Ainda me lembro quando fugiamos para as figueiras, por detrás do campo de futebol, para fumar uma ganza, às escondidas de tudo e todos...e acho que vimos um coelho uma vez....e tu comesçaste a chamá-lo, "vem cá coelhinho, anda cá", o que nos rimos às bandeiras despregadas por causa de um coelho...que nem tínhamos a certeza de ser real...

Fumávamos nos quartos, quando era estritamente proíbido, e voltávamos a rir, a rir, era tão bom ver-te a sorrir. 

Uma vez disseste que te doiam as costas e pediste-me cruelmente uma massagem. Como resistir às tuas armadilhas emocionais? Sabias o quanto te amava, e obrigaste-me  a percorrer com as minhas mãos as tuas costas perfeitas e delicadas. Sentia o suor escorrer em mim, a excitação do toque, mas não dei parte fraca e disse-te "já terminei, estás melhor?". Ficaste-te.

Depois disto foi sempre a descer. Alguém se "chibou" aos enfermeiros que nós tínhamos uma relação, que fumávamos nos quartos e mais não sei o quê...

Fui questionada pelo Enf.º Lourenço tipo PIDE, e neguei tudo. Aguentei firme. Pelo nosso amor. 

Já tu, cesdeste que nem uma manteiga derretida, com medo das represálias, e de que te expulssassem dali. Bem sei que não tinhas para onde ir. Disseste que eu te amava, e que era eu que te perseguia. Provavelmente até disseste que a droga era minha.

Não faz mal, tenho costas largas. Sempre tive pelos outros. Tanto que continuei a ir ao teu quarto fumar ganzas. 

Ontem fui apanhada pelo Enf.º imberbe, mais novo que eu dez anos, mas que se acha a Gestapo em termos de autoridade, e fui repreendida ali, no corredor:

- A D. Matilde já foi avisada várias vezes que não pode estar no quarto de outros pacientes, muito menos a fumar. Mais um aviso e será convidada a sair, compreendeu?

Na sexta feira seguinte, para grande pena minha, a Indie (o meu amor) e o João G., um amigo esquizofrénico, foram convidados a sair por mau comportamento. Apanhados em flagrante a fumar "herbicidas", como lhe chamaram depois - (da loja da Maggie Mushroom) , no quarto do João G., disseram-lhes que era o fim da estadia.

O João G. era um doce, tirando os ataques psicóticos que tinha quando não tomava a medicação devidamente. Foi dar com ele perante uma junta psiquiatrica no Curry Cabral, dado ter sido internado compulsivamente ali na clínica. 

Passei o fim de semana a trocar sms e telefonemas com a Indie, que entre convulsões de auto-comiseração e pânico, me deixou a mim alterada e com vontade de me afastar. Acabou por encontrar abrigo em casa de uma ex-namorada, agora bisexual, que vivia com o namorado e tinha um quarto a mais. Lá foram por terra os planos de vivermos juntas. Claro, ela teve que ser prática, como sempre. 

Depois de passar o fim de semana em casa, voltei à clinica no domingo. Só. Ainda passei com o João G. na Maggie para ir buscar umas ervinhas, e foi aí que me apercebi que o Joao G., apesar da alta na junta psiquiatrica, se ía tornar cliente assíduo da Maggie M...
 
Quanto à minha estadia na clínica, ficou vazia. Que faço eu agora sem um projecto insano para os meus dias? E não deixo de pensar, foi mesmo amor? 

Soube agora pela Rute, a nova aquisição aqui da casa, que andaste a pedir dinheiro às pessoas antes de saires... e a mim não me pediste nada. E isso assusta-me. Porque enquanto aqui eu vou sabendo pelos outros do que andas a fazer, lá fora és uma estranha.

Ontem à noite, depois da última rodada de medicação, fui para a cama, desconfortável, e segui cegamente os teus passos, ceia, cama, cigarro na janela.

Arranjei coragem para te perguntar "directamente", por sms, o que sentias realemente por mim. Tive que insistir, porque estavas fugidia como sempre...mas respondeste, muito directa que "sentias muito pouco" e que "lamentavas". Ao que respondi "obrigada". Pouco depois disseste "desculpa pela falta de honestidade e resposta tardia" e "esquece-me". 

Sobe-me o coração à boca e digo-te "isso é batota. Agora já cá estás dentro e sinto muito a tua falta." Para meu espanto respondes "fui covarde".  

 

 





 






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